Apresentação - Por Ruth Joffily

Em 1972,entrei na Universidade Federal Fluminense (UFF) onde fiz a faculdade de comunicação. Meu grande sonho era ser jornalista. No quarto semestre da faculdade eu comecei a trabalhar, como estagiária, no jornal O Globo. Depois fui para a Bloch Editores. Fiz estágio nas revistas Sétimo Céu e Amiga, que produziam fotonovelas nacionais, até que certo dia, o Roberto Barreira, diretor-editorial da Revista Desfile,  me perguntou se eu aceitaria trabalhar produzindo imagens, produzindo fotos de moda. Eu perguntei ao Roberto o que era aquilo, produção de fotos, pois nunca tinha ouvido falar nada sobre o assunto nas aulas, a grande maioria teóricas, que tinha na faculdade. Roberto Barreira me disse de pronto; “É informar através da imagem.” Topei, na hora. E fiz parte da editoria de moda que foi formada então na Bloch Editores, em meados da década de 70.   
No curso de comunicação da Universidade Federal Fluminense  o que era respeitado era o jornalismo econômico, o jornalismo político, o jornalismo cultural. Ninguém falava em jornalismo de moda, muito menos em jornalismo feminino. O jornalismo de moda era, na época, o filho “bastardo” do jornalismo feminino. Era duplamente marginalizado.  Numa conversa com a jornalista Regina Guerreiro,  escutei um desabafo que resume toda a má vontade que as pessoas tinham, na época, em relação aos jornalistas especializados em moda: “As pessoas acreditam que para entender de moda basta ser mulher ou homossexual” – o que em si já enfatiza um preconceito contra a mulher e contra o homossexual.
Mas a Regina Guerreira tinha toda razão: ao iniciar o meu trabalho como produtora de moda passei a trabalhar, sobretudo, com mulheres e com homossexuais. Todos eram muito cultos, o clima, no trabalho, era de  harmonia. Ali não existia homofobia, nem preconceitos.  Nesse tempo, todos ao meu redor, inclusive minha família e os meus colegas da UFF (Universidade Federal Fluminense) consideravam a moda como algo superficial. A maioria das pessoas julgava, com uma idéia preconcebida, os profissionais da área da moda e do vestuário como “alienados”. Mas eu me apaixonei pelo assunto, me apaixonei pelo jornalismo de moda, e gostava e admirava as minhas editoras (vale destacar Gilda Chataignier e Angela de Rego Monteiro), meus colegas de ofício. E a maioria era gay: havia produtores gays, maquiadores gays, cabeleireiros gays, alguns modelos eram gays, assim como havia estilistas gays. E o meu editor-chefe, Roberto Barreira era um gay assumido. Quando veio a década de 80, com a AiDS, muitos faleceram. Saudade deixou Claudio Neves, excelente produtor de moda. Saudade deixou  Cássio Emmanuel Barsante, assistente editorial de Roberto Barreira.  Saudades deixaram muitos  que foram pegos, desprevenidos, numa época em que era tabu falar de AIDS e nem se sonhava com os famosos coquetéis que existem hoje, apesar de continuar sendo uma doença sem cura.
Foi trabalhando com profissionais homoafetivos, que eu aprendi a conhecê-los. A convivência era diária. Quando viajávamos para realizar produções, o que era uma constante, o convívio da equipe era de segunda a segunda. Ou seja, não havia feriados e nem fim-de-semana. Realizávamos produções pelo Brasil afora, realizávamos produções em vários países da Europa e na África. Ou seja, foi percorrendo o mundo, vasto mundo, como bem diz o poeta Drummond ,numa equipe onde sempre existia, no mínimo dois ou três homossexuais assumidos, que eu aprendi a conhecê-los,  aprendi a respeitá-los.
Com eles, aprendi que ninguém escolhe ser gay. A pessoa nasce gay. E os profissionais com os quais trabalhei, e ainda trabalho, nunca foram de “ficar dentro do armário” e nem tinham vergonha de serem o que eram e são.
  Em meados da década de 80, a minha paixão pela moda, me levou a criar o primeiro curso de jornalismo e produção e moda no Centro Cultural Cândido Mendes, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. Lá, posteriormente, surgiu o Núcleo de Moda. E mais uma vez havia gays assumidos entre os profissionais extremamente capazes e bem-sucedidos que foram ministrar cursos livres, assim como havia gays assumidos entre os alunos dos cursos livres do Núcleo de Moda. No meu curso de Jornalismo e Produção de moda,tive excelentes alunos gays, alguns hoje são celebridades. Na Universidade Veiga de Almeida (UVA) criei com a colaboração do Instituto Zuzu Angel, a primeira pós-graduação em produção de moda, que coordenei durante oito anos. No corpo docente, havia professores gays assumidos, assim como havia professores heterossexuais.  Entre os alunos, havia também homoafetivos e heteros. Posso dizer que nunca vi ou ouvi alguma crítica, descriminação, bullying ou homofobia.  As diferenças eram respeitadas, pois nem professores e nem alunos estavam ali para serem meros copiadores. E lutavam para não serem submetidos a uma uniformização. Não aspiravam ser “uma pessoa padrão”. A diferença existia e palpitava nas salas aulas.
Ou seja, em toda a minha vida profissional  estive e estou ao lado de pessoas homoefetivas. Creio que a indústria da moda, o jornalismo de moda, a produção de moda e o jornalismo feminino foram nichos que acolhiam (e acolhem) estes maravilhosos profissionais, sem descriminá-los  e muito menos exigir que eles “escondessem” (ou “escondam”) seus reais sentimentos ou  que eles tivessem posturas machistas, pois homens – exceto os travestis – todos eles são.
 E o mundo da moda, nos seus bastidores,  sabe  exercer a cultura da alteridade, que é, em poucas palavras, respeitar o outro como ele é. A própria natureza comprova que a diversidade existe e é totalmente saudável.  Ser homoafetivo é  se sentir  atraído por alguém do mesmo sexo. E isto não se aprende em casa, nem na escola, nem em lugar nenhum.  Ser homoafetivo é, em curtas palavras, uma determinação genética. 
Dessa convivência respeitosa, nasceu a ideia deste livro.

Aos cinco profissionais que deram seus depoimentos, que abriram seus corações e mentes,  os nossos agradecimentos. E que este livro seja um instrumento para  que haja cada vez maior respeito pelas diferenças.  Afinal, se nem as nossas mãos têm dedos iguais, por que então esperar uma padronização dos seres humanos? 

Prefácio

Pelo direito de, simplesmente, amar

O convite da jornalista Ruth Joffily para escrever o prefácio deste livro a respeito da homossexualidade originou em mim uma reflexão mais ampla sobre a questão. Como psiquiatra, com mais de 20 anos de prática e estudos em relação à natureza humana, falar sobre a complexidade da sexualidade humana é um grande desafio. Até hoje o assunto homossexualidade é tabu e tem uma compreensão controversa em diversos sentidos. Explicações para esse tipo de orientação sexual promoveram várias correntes de pensamento que, por sua vez, geraram entendimentos diferentes. Para contextualizar melhor a essência da sexualidade humana, nas suas variadas facetas de expressão, percebi ser necessário que se pondere mais profundamente sobre o real e o irreal, do ponto de vista da cultura e do comportamento.
Desde os primórdios da história da civilização humana – vista aqui como núcleo social, e conforme a estruturação de uma dada cultura – aparecem relatos que dão conta da preferência homossexual. Em civilizações como a grega e a romana, não era incomum membros influentes serem homossexuais e, em geral, socialmente bem aceitos. Cito isto apenas como um preâmbulo a esse complexo assunto, sem a intenção de um detalhamento cronológico ou histórico, mas sim para assinalar a existência deste comportamento social.
Através dos tempos, a posição “ser homossexual” acabou trazendo muito sofrimento para homossexuais e afins. Pois, toda vez que se nega algo que é real, desencadeia-se um sofrimento, como um preço a ser pago por não se aceitar o que faz parte de uma realidade. Goste-se ou não, abomine-se tal ideia, tenha-se nojo ou medo – o fato é que a homossexualidade faz parte de uma das características sexuais intrínsecas ao ser humano.
Quantos homossexuais tiveram de negar ou esconder sua sexualidade, para preservar sua privacidade ou mesmo resguardar sua vida profissional e assim manter a aceitação em um meio social mais amplo? Na trajetória de cada um deles, seus conflitos e dificuldades geralmente foram vividos solitariamente, em nome de se sustentar uma imagem aceita dentro da chamada “realidade social”. Mas em que bases tal realidade foi fomentada?
O convívio social, em uma dada cultura, determina o que é certo e errado ou o que é totalmente inadequado e até anormal – e essas regras estão geralmente ligadas aos costumes e crenças religiosas dominantes. Outras vezes, certos regimes políticos acabam por impor comportamentos sociais e ditar normas consideradas aceitáveis para o convívio em uma sociedade. Ou seja: a definição do que é certo ou errado e até o que é anormal respectivo à sexualidade humana sempre acabou se fundamentando em dogmas religiosos, em normas psicossexuais, ou em padrões estabelecidos por determinada cultura ou impostos pelo regime político predominante? Cabe então perguntar: e na sociedade contemporânea? De que forma evoluiu o entendimento da sexualidade humana?
A constante preocupação com a perpetuação da espécie fatalmente foi o fator preponderante no determinismo da heterossexualidade como a expressão da sexualidade humana mais aceitável e a esperada através das épocas. Além, é claro, dos interesses socioeconômicos que essa questão sutilmente encerra – isto é, a necessidade de genuínos herdeiros de sangue na defesa de patrimônios. A família tradicional – o clã – é fruto de todos esses anseios. Mas o fato é que nem toda essa angústia antiga quanto à preservação de nossa espécie conseguiu inibir a manifestação homossexual.  
Como especialidade médica, a Psiquiatria se incumbe de determinar o limite entre o normal e o patológico. Ou seja: o que se considera como normal ou não normal acaba sendo intrínseco a um aspecto temporal, que em si mesmo só é dinâmico e tem a ver com a evolução dos costumes e as mudanças nas formas de pensar e perceber as coisas. E mesmo que, a princípio, isto possa parecer apenas mais um posicionamento a favor da homossexualidade, trata-se na verdade de questionamento do que seja, justamente, a sexualidade humana. Na sua evidência, ela é multifacetada.
São vários e diferentes os aspectos que acabam compondo a complexidade do ser humano como ser sexual – e uma dessas manifestações é o homossexualismo. Assim como existem outras naturezas inerentes: o transexualismo o hermafroditismo – enfim, um determinismo, e não uma escolha. Em outras palavras: nasce-se assim. A despeito de existirem opiniões avessas a variantes que extrapolem um padrão esperado, entretanto, o fato é que nosso cotidiano contradiz tal expectativa. 
A espécie humana é essencialmente social, com capacidade para amar e necessita desenvolver sua afetividade. Em qualquer nível, os relacionamentos humanos devem ser, acima de tudo, afetuosos. A aceitação do diferente é o grande princípio para a convivência harmoniosa. Ser diferente não se reduz tão somente à opção sexual. Homens e mulheres são diferentes. Jovens e velhos são diferentes. Existem diferentes etiologias raciais. Lidar com o diferente é, portanto, um exercício constante no desenvolvimento de nossa humanidade. É ser civilizado. É estar socializado.   
Na heterossexualidade – momento do encontro mais íntimo, em todos os sentidos, entre homens e mulheres – saber conviver com as diferenças de cada um, respeitá-las e entender suas necessidades e expectativas é essencial no desenvolvimento de um relacionamento bem-sucedido. Mais do que o aspecto do bom entendimento sexual, a cumplicidade, o amor, a compreensão mútua e a amizade formam a base sólida para um relacionamento feliz.
Todo ser humano anseia ser amado e aceito como individualidade. O caminho de cada um se faz na liberdade de suas escolhas. Respeitar essas escolhas é o que se almeja, em uma sociedade realmente coerente na sua acepção. Todo ser humano busca ser feliz e realizado. Aliás, ser feliz deve ser seu maior objetivo existencial. Um sistema social saudável deve garantir esse direito a cada um.
A concepção do que seja um casal mudou: atualmente, ele também pode se constituir de dois indivíduos do mesmo sexo. Isso acarretou mudanças na jurisprudência de vários países, a fim de poder atender a todos. Pois, mesmo no caso da homossexualidade – quando o foco já não é somente a conquista sexual – a busca por um relacionamento estável se fundamenta no companheirismo e na afetividade, características que são, no fim das contas, bem humanas. Ao se estabelecer legitimidade a essa aliança de parceria, a estruturação familiar adquiriu outras concepções e o núcleo familiar se transformou.
Finalmente: o que saímos ganhando ao permitir uma expressividade mais ampla da sexualidade humana? A resposta é clara: a própria evolução da nossa sexualidade desencadeou esse processo e, graças a isso, acabamos por nos humanizar mais, ao compreender que exercer esse direito é, em si, simplesmente amar.

Dra. Lilian Claudia Almeida de Souza - Psiquiatra

Especialização em Psiquiatria pela UFRJ 







A autora agradece a colaboração do jornalista
Marco Antonio Gay e a assessora de imprensa Laura Oldenburg na realização do livro.


Caetano Gusmão

CAETANO GUSMÃO, cabeleireiro

As clientes do talentoso cabeleireiro Caetano Gusmão dizem que ele tem “mãos de tesoura”, numa referência ao filme Edward Mãos de Tesoura, do americano Tim Burton. Mas, ao contrário do tímido personagem interpretado por Johnny Depp, Caetano é muito bem articulado e tem olhos tão afiados quanto as lâminas que maneja para dar um toque especial a cada penteado. Instalado num dos salões mais chiques da Zona Sul do Rio de Janeiro, ele fala sem problemas de sua homossexualidade tranquilamente assumida – e ainda faz humor: “Vamos combinar que o mundo é gay. Menos o Irã, é claro!”


Em que época da sua vida você se descobriu homossexual?

Posso dizer que foi na faixa de 12 a 15 anos. Mas, na verdade, a gente já nasce com uma certa performance – uma forma de falar e de andar, um tipo de comportamento. E o olhar, entende? É uma coisa da alma. Porque ninguém se torna homossexual: já nasce assim. E não adianta fugir.
É a mesma coisa que dizer: “Fulano se tornou mau-caráter”. O caráter não muda. Aliás, no caso do homossexual, eu poderia dizer que ocorre o contrário: o caráter até melhora, quando você se assume e não precisa mais se esconder.
Eu me lembro que, desde pequeno, sempre saía do banho com uma toalha enrolada no corpo, como se fosse um vestido. Já era um toque feminino, entende? Só que eu não tinha consciência, porque era um garoto... Mas minhas duas irmãs percebiam – e me sacaneavam. Eu era o caçulinha, o “filhinho da mamãe”. Até que, aos 13 anos, eu tive uma relação – uma transa – que começou como aquelas brincadeiras de médico de toda criança. Foi com um amigo de colégio – e por aí começou. É aquela história: as brincadeiras de meninos e meninas de todas as épocas são as mesmas... Mas eu tinha instinto, desejo, tesão... E também tinha atração por mulheres – inclusive, namorava com uma garota na minha rua. Só que eu olhava os garotos de outro jeito.

E como você conseguiu lidar com essa realidade?

Foi delicadíssimo. Há 35 anos (eu agora estou com 51), Salvador era uma cidade com mais preconceitos e tabus do que hoje – e olha que ainda existem muitos... Imagine que eu morava numa rua pequena e sem saída, com um muro no fundo. Todo mundo sabia da vida de todo mundo! Foi uma barra, tentar segurar esta história. Aliás, nem deu para segurar: todo mundo ficou sabendo. É como naquela brincadeira de “telefone sem fio”, em que uma história vai sendo aumentada, de boca em boca. Só que, no meu caso, não tinha graça nenhuma.
Claro que eu sofri muito com isso. Mas também consegui atingir cedo certa liberdade de escolha. Com 17 anos, saí de casa e fui para São Paulo, já querendo a independência. Queria conhecer gente, morar sozinho, para poder ter uma vida mais livre. Morei três anos em São Paulo. Foi lá que eu me descobri, realmente, ao ter relacionamentos com homens mais velhos. Eu era novinho, e fazia o maior sucesso.

Qual foi a reação de seus pais quando descobriram que você era homossexual?

Com meu pai e minhas irmãs, isso aconteceu um pouco mais tarde, quando eu 
 já estava em São Paulo. Tive que contar, por causa de um acidente de carro que sofri, junto com um namorado, que morreu no desastre... Sou meio viúvo... (risos) Resultado: meu pai soube de tudo. Tive que voltar para Salvador, para minha mãe cuidar de mim. Eu tinha quebrado as duas pernas, mas felizmente voltei a andar. Meu pai então falou para minha mãe que, se ela me aceitasse, ele iria embora de casa... E ela ficou comigo. Na verdade, meu pai já queria se separar da minha mãe e acabou me usando como pretexto. Quanto à minha mãe, claro que ela já sabia! As mães sempre sabem – acho que tem uma música do Cazuza que diz isso... Não quer dizer que elas aceitem – mas ela compreendeu, como boa mãe... Nunca me recriminou, nem me chamou de nenhum nome “daqueles”. Claro que não foi uma aceitação normal, completa. As mães sempre sonham em ver o filho com uma família, casado e com filhos.

E como foi sua relação com a família?

Sou de uma família simples, do interior da Bahia. Minha mãe Helosina, mais conhecida como Helô, sempre foi tudo pra mim. Nota 100! Já meu pai, que tinha e tem uma pequena fazenda de algodão, e hoje está com 84 anos, é nota 50. Mora em Bom Jesus da Lapa, está casado de novo, e com quatro filhos. Falo com ele por telefone. Tenho duas irmãs: uma é casada, virou dona de casa em Salvador; e a outra é chefe de cozinha, tem dois restaurantes em Bruxelas, na Bélgica. Elas me aceitam, mas só agora... Vamos ser francos: agora, que estou independente e não preciso de guarida, ficou mais fácil gostar de mim, não é mesmo? Pelo contrário: até criei um “filho”, que era da minha irmã do meio. Ela não tinha condições de criar. Hoje ele é advogado, está casado e muito bem, graças a Deus.

Em suma: você nunca tentou esconder a homossexualidade...

Nunca. Até porque não adiantaria: as pessoas sempre notam, pelo jeito e pelos trejeitos, por mais discretos que sejam. Tem sempre aquele jeito da mão, a desmunhecada. Hoje em dia nem tanto, porque muitos gays até não dão pinta nenhuma. Você cruza na rua com certos homens musculosos e não diz que eles são... Mas, naquela época, só existia um tipo de gay: aquele mais afeminado, que hoje ainda existe, mas de uma forma bem mais digna. Tudo isso já é uma vitória. Você pode ser cabeleireiro, mas não precisa fazer aquele estereótipo afeminadíssimo – o chamado viadinho... Não é por aí. Homossexual não precisa levantar bandeira, nem trazer escrito na camiseta: “Eu sou gay”. Para quê? Não precisa disso.  Hoje, ser gay não precisa ser uma mancha de petróleo no mar. (risos) Qualquer um pode levar a vida, independente e ser, por exemplo, cabeleireiro ou advogado. Porque existem homossexuais cabeleireiros, homossexuais advogados ou médicos, e por aí vai. Mas num detalhe não tem jeito: dá para identificar o homossexual pelo olhar, sabia? Existem alguns que não enganam. Podem até estar casados com a mulher que for. Você olha e – pimba!
Caetano Gusmão

Quanto tempo se passou entre você se assumir como homossexual e começar a praticar, até finalmente um dia dizer: “Eu sou e estou feliz”?

Tudo isso foi acontecendo muito naturalmente. Pensando no meu passado, percebo que tudo veio vindo de forma gradual, sem sobressaltos. Porque a vida vai lhe mostrando e você passa a gostar de coisas mais belas – enfim, desenvolve um  outro olhar. Para uma flor, uma vitrine, um quadro, essas coisas... É uma questão de sensibilidade. Mas isso não quer dizer que um homem não pode ser sensível também e não ser gay. Qualquer pessoa pode entrar num museu e amar um quadro deslumbrante. Assim como existe gente que não gosta de arte, nem de nada. Isto não é só coisa de gay. Muitos marchands e muitos organizadores de exposições não são gays. Mas muito são? Claro que sim! Vamos combinar que o mundo é gay. Menos o Irã, é claro! (risos)

Você consegue se ver como heterosexual?

Sou completamente gay. Não me vejo como uma pessoa diferente. Mas acredito que, se eu fosse macho, heterossexual, talvez fosse um excelente cabeleireiro também – por que não? Eu sempre digo e repito: minha profissão não tem nada a ver com a condição sexual. É uma questão de vocação e de ter uma sensibilidade maior. Já tive a fase de desmunhecar, mas agora posso declarar: sou um homem que gosta de transar com outro homem. Não sinto nenhuma necessidade de me transformar em mulher. Aliás, só fiz isto uma vez, e foi péssimo...

Como foi isso?

Eu trabalhava na Rede Globo, como assistente do cabeleireiro Silvinho, logo que cheguei ao Rio de Janeiro. Um dia resolvi sair na Banda de Ipanema e, pela primeira vez, vesti uma roupa de mulher. E acabei me sentindo muito estranho, pois percebi que não queria aquilo para mim. Mais tarde, quando voltei para casa e tirei a roupa e o salto alto, tive uma febre horrorosa, daquelas que dão calafrios. Acho que alguma “entidade” não queria que a mulher saísse de mim. Mas eu não queria aquele personagem. Com o tempo, eu fui mudando: fui lapidando, prestando mais atenção aos meus gestos... Não que eu deva satisfação à sociedade – sou independente, pago minhas contas, meus impostos. Mas é que eu me sinto melhor assim. Posso sair na rua sem medo, embora hoje em dia ainda exista muito preconceito. Acho que vai existir a vida inteira.

E quando foi que começou sua carreira de cabeleireiro?

Entrar nessa profissão foi uma alternativa para mim. Primeiro, porque eu só estudei até o ginásio, o que hoje equivale a completar o ensino fundamental. Então, quando me recuperei do acidente e voltei a andar, já em Salvador, um amigo da minha mãe – que era gay, e a gente já sabia – perguntou-me se eu não queria trabalhar no salão de um amigo dele. Por isso, posso dizer que o fato de ser homossexual assumido nunca me fechou as portas profissionais... Pelo contrário: eu estava sem fazer nada e no salão acabei descobrindo este dom que Deus me deu. Cortar cabelos, preparar um belo penteado, é parecido com pintar um quadro – só que trabalhando com as mãos e a tesoura. Então, acredito que este meu dom de cabeleireiro já veio da minha mãe, que era uma costureira famosíssima, em Salvador, lidando com as tesouras. Quer dizer: ou eu ia ser estilista ou cabeleireiro. Mas eu já nasci com este dom. Sou autodidata. E assim eu comecei.

Mas Salvador se tornou um horizonte muito estreito para você...

Exatamente. Então eu tomei a decisão de me mudar para o Rio de Janeiro. Comecei morando numa vaga na rua Voluntários da Pátria [em Botafogo,Rio de Janeiro]. Depois, eu e um amigo meu alugamos vaga em Copacabana, perto da rua Ayres Saldanha. Vaga, mesmo: cama beliche. O quarto era tão estreito que, para um ficar em pé e trocar de roupa, o outro precisava se deitar. O banheiro era do lado de fora – era horrível. Quando eu comecei a melhorar de vida, trouxe minha mãe para morar comigo, numa quitinete perto dali, na Ayres Saldanha. Ela veio para cuidar de mim, porque eu estava com uma tosse muito forte, saindo muito à noite, sem cuidar da alimentação. Pedi ajuda. Resultado: mamãe veio para passar uns 20 dias e acabou ficando mais de 20 anos.
Quando ela chegou eu já estava morando com dois amigos. Todos gays: um deles tinha vindo comigo de Salvador e o outro era o namorado, que ele conheceu aqui. Ela ficou com a gente, e logo se tornou amiga da travesti que morava na cobertura e era dona praticamente do prédio inteiro. Ficaram amigas intimas e ela já começou a costurar para a bicha (risos). Mamãe alugou um apartamento para mim e outro para ela. A esta altura eu já estava na TV Globo, ganhando melhor, as coisas foram mudando. Claro que teve aquela essa coisa, o deslumbramento da profissão: trabalhar na Globo!

Como você se sentiu, trabalhando lá?

Trabalhei durante três anos, no Teatro Fênix. Foi nos anos 80. Chacretes, Balança mas não Cai [programa de humor] com o Lucio Mauro, e também na linha de shows com Sandra Bréa, Zezé Motta – enfim! O Silvinho me dava espaço: com o talento que ele tinha, me dava muita liberdade. Era uma figuraça, participava do júri do Chacrinha, e tudo. Enfim, fiz programas maravilhosos, trabalhei com Denis Carvalho, com Beth Faria... Ele me dava espaço, me deixava em cena, mesmo.

Por que ‘Paulo Roberto’ virou ‘Caetano’?

Foi quando eu cheguei e fui trabalhar com o Silvinho. Logo na primeira entrevista, quando ele perguntou qual era o meu nome. E eu: “Meu nome é Paulo”. Ele disse, então: “Vai virar Paulinho”. Mas logo ele viu que ia dar confusão: Paulinho com Silvinho... Então ele me olhou, de cima embaixo. Eu era magrinho, com cabelinho encaracolado, baiano... E ele: “Você parece o Caetano [Veloso]. Vai ficar Caetano”. E foi assim que ele me batizou. Desde então, meu nome é Caetano Gusmão. Mas na certidão continua sendo Paulo Roberto Teixeira Gusmão. Não mudei, porque dá muito trabalho...

E aquela história de virar empresário e abrir um salão?

Foi uma história muito maluca, porque as pessoas achavam que eu era dono, sem nunca ter sido. Todo mundo pensa que eu fali, essas coisas...  Mas aquele salão não era meu. Aconteceu quando eu trabalhava no Douce Beauté e a tal dona vivia atrás de mim – aliás, desde que eu era assistente do Jambert, na Avenida San Martin [no Leblon], eu já fazia o cabelo dela. Só que ela já tinha visto que eu tinha talento. Resultado: ela foi me encontrar no Douce Beauté, e nessa época ela já tinha um salão, e tal. Quer dizer, eu não tinha nada no meu nome – mas estava deslumbrado. Foi quando rolou a droga na minha vida. Maconha e cocaína. E eu entrei num ciclone. Foi terrível.

Você provou, gostou e se viciou?

Pois é: eu me deslumbrei com dinheiro. Tudo ficou mais “fácil”: queria comprar isto, comprar aquilo. Não demorou, alguém já me apresentou um baseado, uma carreira. Era um momento muito bom, profissionalmente, porque o salão foi um sucesso. Mas, para a minha vida, para a minha saúde, não foi nada legal. Porque eu não sabia o que era a cocaína – e acabei cheirando por um bom tempo!  E meu rendimento caiu direto: eu trabalhava pessimamente! Ou seja, Deus tinha me dado um dom que eu estava jogando fora. Porque a cocaína é destrutiva, corrói o cérebro. E não tem coisa pior do que o “Day After”.
No começo é tudo maravilhoso. Afinal, a droga dá um bem-estar, algo na linha: “Eu posso tudo!”. Até que um dia... você descobre que entrou no vermelho, e não tem dinheiro para comer. Você fica magro e feio – como eu fiquei. Enquanto você está neste redemoinho, sempre aparecem os “amigos”, os assessores que ficam em volta porque você tem o melhor uísque, e um monte de drogas. A casa estava sempre cheia... Vá ver agora, se minha casa anda cheia de “amigos”,  quando já não tem nem bebida alcoólica, nada disso?...

Como você conseguiu sair dessa loucura?
Sair de uma situação assim é sempre difícil. Felizmente, eu não precisei me internar, nem nada. A ficha caiu quando meu mundo veio caindo junto: minha mãe doente, a clientela sumindo... Tive então que optar: era a minha carreira ou as “carreiras”... Deu aquele clic! Fiz terapia, durante uns dois anos. Na época, eu morava na Rodolfo Dantas, em um apartamento enorme, mas que não era meu. Mas a gente morava ali, porque tudo estava indo bem – até que começaram a acontecer as coisas, e eu vi que estava numa furada. Tive que acordar. Ou seja, caí na real quando a minha mãe morreu, e eu estava péssimo. Venci a guerra contra as drogas na base da força de vontade. Eu estava perdendo tudo – inclusive a dignidade. Foi duro: a abstinência foi demorada, com várias recaídas, até eu finalmente acordar e ver que estava fodido. Sem falar que a cocaína te deixa promíscuo. Dá o maior tesão, apesar de deixar o homem brocha. Ninguém cheira e fica de pau duro. Não há boquete que levante! (risos)

Quando foi que sua mãe morreu?

Foi há cerca de uns 14 anos. Minha irmã mais velha veio da Bélgica para o enterro. Ela já não via nossa mãe há uns 20 anos, e quando chegou ela já estava enterrada... “Quem paga a conta?”, ela perguntou. Então eu disse: “Olha, você é poderosa, mas já está tudo pago”. E então eu viajei com ela. Vendi meu carro, fui para a Bélgica, fechei o apartamento, paguei umas contas e fiquei oito meses morando na casa da minha irmã, em Bruxelas. Sofrendo muito, é claro, porque irmã mais velha é foda. Graças a Deus eu tinha algum dinheiro guardado. Hoje em dia estou com o maior tesão, na minha profissão e na vida – e não vou me prejudicar com drogas. Como eu disse: era a minha carreira ou as carreiras.

E você optou pela carreira profissional...

Claro! Estou limpo há 12 anos. Aliás, conseguir chegar à minha situação atual, de trabalhar com a Pimenta [N. R.: apelido de Ivanir Werneck, proprietária do Salão Care], foi a maior prova de que eu estava bem. Porque, se eu não tivesse valor, se não fosse importante, ela não iria me contratar, nem me dar uma força financeira para eu trocar de salão. [N. R.: ele se refere ao dinheiro pago pelo “passe profissional”]. Não foi nada na faixa dos milhões, como os dos jogadores. Mas, para quem está duro,  qualquer dinheiro que entra é uma beleza.

Como começou esta parceria com a Pimenta?

A Pimenta me contou que já me “filmava” desde o Fórum – porque ela tentava e não conseguia marcar hora comigo... Quando ela me procurou, eu já estava no Fashion Clinic, mas ainda não estava numa situação bacana. Ela me chamou para jantar umas seis vezes e acabamos tendo uma boa conversa no dia do meu aniversário, 12 de julho, três anos atrás. Pedi uma grana para ela. Admito: fui puto mesmo, e vendi o meu talento! Mas também é a única coisa que eu tenho para vender... Para onde eu vou, levo minhas clientes, mas sempre acabo perdendo algumas, não é?
Agora que eu estou mais sólido. Também corto cabelo de homem, e até já tenho uma clientela masculina – embora os homens não gostem de pagar nosso preço. Um corte de cabelo normal comigo hoje é R$ 250,00 – só para cortar, a gorjeta é opcional. Vou contar um segredo: tenho uma porcentagem (risos). Mas a maioria da clientela ainda é feminina: quando quer um profissional bom, a mulher paga, com mais facilidade do que o homem.
Caetano Gusmão com a modelo Marcella Polo

Antes de trabalhar no Salão Care, parece que você ainda estava num momento profissional difícil...

Antes eu estava naquele meu que não era meu... Eram duas salas, o salão já estava montado. Quando comecei a ganhar dinheiro, comprei uma sala dela, e ficou assim: uma sala era minha, a outra era dela. O  problema é que essa mulher começou a sentir tesão em mim – e juntos nós acabamos fazendo algumas... “loucuras”. Ela era casada, imagine, e nós íamos, assim de repente, passar uma noite em São Paulo, outra em Nova York... Uma vez, em Nova York, ela começou a querer dormir comigo! Dormimos, e não aconteceu nada.
Um dia, lá em casa, ela se jogou em cima de mim. Resumo da ópera: como eu não correspondia aos desejos dela, resolveu me sacanear. Para você ter uma ideia: ela me convidou para morar num apartamento dela na Lagoa, e lá fomos eu, minha mãe e meu filho (que eu criei, e hoje está com 26 anos). Pois bem, eu ainda não tinha baixado a mudança, as caixas e móveis ainda estavam entrando, quando o telefone tocou. Era ela: “Eu quero que você saia do meu apartamento!”. O próprio responsável pela mudança ficou boquiaberto: nunca tinha visto uma coisa daquelas...
Pois bem. Ela foi para São Paulo, eu continuei trabalhando e pagando o aluguel da outra sala, mesmo com toda a história do apartamento. Mas então ela vendeu a sala sem me avisar. Um belo dia, eu estava trabalhando e entrou um sujeito dizendo: “O senhor é Paulo Roberto Teixeira Gusmão? Esta sala em que está trabalhando é minha”. Então desmoronou tudo! Acabei vendendo a minha sala, porque não ia ficar com um salão micro.

Mas você conseguiu dar a volta por cima...

Custei um pouco, mas consegui reverter a tragédia... Dali, fui trabalhar num salão em Copacabana, na Rua Barão de Ipanema, onde fiquei durante algum tempo. Mas tudo ainda estava muito confuso, pois eu continuava no vício... Depois, quando fui para o Leblon, aí as coisas foram clareando. Era um salão no Hotel Marina, e o proprietário me deu um carro para eu ir trabalhar com ele. Foi esse carro que eu vendi mais tarde, para ir para a Europa, morar com minha irmã...

Fazendo um balanço agora, você diria que a homossexualidade levou você a ser cabeleireiro?

Eu acho que foi uma opção, um talento que eu descobri – algo que eu nem sabia que tinha. Porque é uma profissão delicada, artística, que mexe com a emoção. Acontece a mesma coisa com atores – por isso existem tantos atores homossexuais, embora nem todos se assumam (risos). Não tem erro, essa coisa da delicadeza, do manuseio, da arte da mão, da perfeição: o cabeleireiro, a área de moda, o bailarino, o enfermeiro, o ator...
Claro que também existem atores heteros – como existem cabeleireiros que não são gays. Pena que tenha ficado este estigma em cima da profissão... Acho que a própria mídia faz do cabeleireiro a “pintosa”. Mas, no fundo, não tem tanto a ver assim. Porque hoje temos até excelentes cirurgiões plásticos que são homossexuais. Aliás, eu imagino que deva ter homossexual na plataforma de petróleo: já pensou naquele bando de homens no meio do mar?... (risos)

Existe alguma diferença entre o homossexual masculino e o homossexual feminino?

Existe, sim. Elas são muito mais fechadas, convivem e se relacionam principalmente entre si. Na verdade eu tenho pouquíssimas amigas gays: é muito difícil entrar naquele mundinho fechado. Por exemplo: vocês conseguiram chegar a alguma mulher que quisesse dar o depoimento para este livro? Pois é... Elas se fecham muito. Mesmo assim, conheço um casal gay feminino e tenho muitas clientes casadas com mulheres. Por isso posso dizer: elas são muito mais fiéis entre elas, na relação. Este é o meu olhar, o meu ponto de vista: elas são mais fiéis, mas também muito mais possessivas.

Por falar nisso: entre as homossexuais femininas, existe aquela que faça o papel do “homem do casal”?

Com certeza. Uma vai mais à luta, enquanto a outra é mais passiva. É igual aos homossexuais masculinos: existem aqueles que fazem o estilo São Sebastião – quer que você faça tudo nele, inteiramente passivo, na cama. Aliás, existem homens que também são assim: quer que a mulher trabalhe, e, se pudessem ficavam lendo o jornal (risos). É igual a mulher que gosta que o homem faça tudo, e que ela fique passiva. Ao mesmo tempo, existe a mulher ativa, no sentido de tomar conta da situação. Outras até ficam lixando a unha, como se dissessem: “Faz aí, meu amor!”.
Eu prefiro ser ativo. Eu não gosto daquele estereótipo do homem machão. Tenho alguns amigos que adoram o tipo machão, mas eu não: na hora do rala-e-rola, vale tudo. Eu acho que o homossexual masculino é mais puto, quer dizer: ele é mais homem, e até por isso é mais infiel, mais galinha. São raros os que são fiéis – apesar de existirem casais homossexuais que estão juntos há anos e que são fidelíssimos.

Existe muita mulher gay que é casada... com homem?

Isto acontece muito no meu trabalho. Em geral, todas são ricas e casadas, e uma é namorada da outra. Todo mundo sabe, mas ninguém dá um pio... (risos) A maioria é casada, mas o casamento está uma merda, e ela avisa que vai ao cabeleireiro, mas só volta às dez ou 11 da noite – quer dizer, passa as horas com a amiga. Existe também o estereótipo daquela mulher que é sapatão, aquela tipo bota, a machona. Mas hoje em dia a maioria das mulheres está mais feminina: você olha e não diz que ela adora outra mulher.
Tenho uma cliente que era casada há 16 anos com um cara, e me confessou há um mês: separou-se do marido e está namorando uma amiga de infância. Quando se reencontraram, ela péssima, porque o marido tomou tudo que havia dado a ela – os quadros, a coleção de jarros, todas aquelas coisas caras... Só deixou com ela as jóias e um apartamento (aliás, deslumbrante). Ou seja, a amiga a encontrou num momento frágil.

 De cocar: Caetano Gusmão e Louise Sabóia

E nos casamentos heterossexuais? Quem trai mais, hoje em dia: o homem ou a mulher?

Hoje a mulher é um perigo, mas acredito que ainda existe uma preponderância masculina. Assim como na união entre dois homens a traição continua. Isso, aliás, é um negócio bem masculino. No começo, tudo são flores, como em qualquer relação. “Eu te amo, jamais vou te trair”. Mas o homossexual é viril, ele se joga mesmo, vai para uma boate, etc. O outro viaja para a Europa e ele fica sozinho... Já viu, hein? Tem cabeça de homem: vai à caça.
Acho que hoje a mulher heterossexual está mais liberal, enquanto a mulher gay mais fechada. Em compensação, as heterossexuais são mais frias. Entre as mulheres homossexuais, há um fenômeno engraçado, de uma transar com a outra, num grupo fechado: Maria transou com Tônia que transou com a Josefa, que transou com Silvia – como naquele poema do Drummond [N. R.: refere-se ao poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade].

Você acredita em bissexualidade?

Com certeza! Dizem que o [ator] Sérgio Brito, por exemplo, não acreditava: achava que isso serve apenas para disfarçar a homossexualidade. Mas é claro que existem pessoas com um lado mais aguçado do que outras. Eu já tive uma namorada, aos 30 anos. Não fui com tanta “sede ao pote” – mas gostava, fazia tudo direitinho, até ganhei nota alta. Sim, porque você tem que ir com vontade: tem que comer a fruta e chupar o caroço (risos).
Já ouvi falar de muitos maridos que são homossexuais. Eu até acredito que o homossexual pode ser um ótimo marido. Porque, nele, o lado feminino fica mais aflorado. E, além disso, ele deixa a mulher mais livre e solta, já que tem uma vida paralela. E no fim dá tudo certo.

Você já sofreu alguma discriminação que machucou, ou deixou magoado?

Não que eu me lembre. Porque, quando a gente tem um nome, sendo um profissional de talento reconhecido, existe um pouco mais de respeito. Pode até ser que, quando eu viro as costas, muitos digam: “Olha lá a bicha, olha lá o viado”, essas formas chulas que as pessoas usam para apontar o homossexual. Mas isso é uma situação que eu não quero passar na rua.

Você beijaria seu namorado em público?

Se rolasse uma coisa assim, se eu tivesse meio colocado? (risos) Bem, sinceramente, isto não é uma coisa minha, que eu faça publicamente. As pessoas ainda se sentem agredidas vendo dois homens se beijando na boca. Veja o caso da última novela de Gilberto Braga [N. R.: Insensato Coração, que terminou em agosto de 2011]. Havia uns seis gays na história, mas não rolou um beijo. O próprio autor comentou, na época, desde a estréia: “Não vai ter beijo, o povo não está preparado para isto.” Por isso é que nunca teve. Podem  até anunciar, mas não tem.

Ney Matogrosso lamentou assim, certa vez: “Por que não gostam de mim, se eu não fiz nada de mal para ninguém? Eu trato as pessoas com muito carinho, eu canto para elas...” Por que a sociedade brasileira tem tanto medo do homossexual?

Esta colocação do Ney é divina! Faço minhas estas palavras dele. É o meu  caso também: eu embelezo as pessoas, inclusive muitos homens. Tenho clientes homens que adoram meu trabalho, gostam de mim e me cumprimentam na rua. Porque na minha profissão acontece muito disso: clientes que falam com você dentro do salão, mas não na rua, ou num restaurante. Existe muito de “cultural”, nisso: acham que cabeleireiro não tem cultura, e entrou na profissão porque não estudou. Mas eles não lembram que é preciso talento.
Infelizmente, hoje em dia a profissão se prostituiu: qualquer um quer ser cabeleireiro porque acha que é rentável. É sim, mas para quem tem talento. Não adianta fazer um curso aqui ou ali e se tornar cabeleireiro. Porque um pintor já nasce pintor. Então o cara vê o que ele fez e vendeu por milhões, vai entrar num curso, achando que também vai faturar alto? Imagine!

Você acha que no Brasil existe mais homofobia do que no exterior? Ou isso é um fenômeno mundial?

Acredito que ocorra no mundo inteiro. De repente, São Francisco (Estados Unidos) pode ter mais liberdade, mas não é uma cidade só de homossexuais. Nem Nova York, onde o prefeito é homossexual. Existem países com mais liberdade, onde se pode andar de mãos dadas, como hoje em dia está havendo no Brasil. Mas hoje as pessoas ainda recriminam se veem, por exemplo, um casal de mulheres na fila, de mãos dadas e trocando carinhos.
A homofobia sempre vai existir, por mais que se façam campanhas. Os preconceitos continuam. Pode ser aqui, como pode ser na Índia. Já imaginou ser um homossexual no Cairo, Egito, onde está havendo toda essa revolução? E existe também a homofobia interna, ou seja, do próprio homossexual. Como o negro, com ele mesmo. A homofobia, não deveria existir, mas existe. Isto é uma realidade!

Por que matam tantos homossexuais?

Porque existem gangues que odeiam homossexuais. Eles têm medo da própria sexualidade, são bichas enrustidas. Partem para agredir, porque o outro é, assumidamente, aquilo que eles não conseguem ser. E este não é o único risco. Antigamente, por exemplo, havia muito “Boa Noite, Cinderela” [N.R.: procedimento de dopar o homossexual para invadir sua casa e roubar]. Hoje em dia já não está tendo tanto. Felizmente, as pessoas estão tendo mais cuidado ao levar um estranho para dentro de casa.
Eu mesmo estou mais atento. Outro dia, eu estava saindo do cinema e um sujeito me parou no meio da rua. Passei por ele, ele me olhou, e eu segui em frente – mas ele insistiu e encostou em mim: “Você é daqui? Mora por aqui?”. Eu confirmei, e ele: “Não quer fazer um amor gostoso?”. Eu olhei para ele e fui taxativo: “Não”. Só assim ele atravessou a rua e foi embora. Tinha a maior pinta de ladrão, porque pelos olhos você conhece.

Já tinha acontecido antes com você?

Sim, já levei o perigo para dentro de casa. E quase me ferrei: acordei dois dias depois, vítima de um “Boa Noite, Cinderela”, sem relógio e sem nada. Poderia ter morrido. A esta altura, são raros os homossexuais que não foram vítimas. Isto era um vacilo – que eu mesmo também cometi. Na verdade, existe um verdadeiro mercado de sexo, e existe muita gente que contrata porque é prático. Há estes meninos que fazem michê de rua, mas existem também agências de mulheres e agências de homens. Tudo pelo delivery, com um simples telefonema (risos). Se você entrar na internet, vai encontrar tanto agências masculinas quanto femininas, e para os dois sexos... São sites de prostituição, com fotos e espaço para você agendar horários, preços... Se é seguro? Sinceramente, não sei. Porque eu nunca pedi pelo computador.

E como você vê hoje em dia a questão da Aids?

Este é um assunto delicado porque foi uma coisa devastadora, pelo menos no início. Felizmente, hoje em dia as pessoas sobrevivem muito bem com isto. Mas o perigo ainda existe. Uma médica querida, infectologista, que é minha cliente, andou me contando: hoje em dia, os casos mais comuns de Aids ocorrem entre homossexuais jovens, na faixa dos 18 aos 20 anos, que não se cuidam. Pior: são aqueles que acham que, se pegar, já tem o coquetel, e tudo bem. Só que não é bem assim.

Você participa de algum tipo de combate à discriminação dos homossexuais, em termos de fortalecer a cidadania?

Eu não sou militante. Acho que adoraria ser. Mas nem acho tão necessário participar, porque já existe tanta gente fazendo isso, e você precisa se engajar como numa causa em que vai ter que brigar muito por ela. Tal como faz o Cláudio Nascimento[N. R.: coordenador executivo da Parada do Orgulho GLBT do Rio de Janeiro - a primeira do Brasil - de 1995 até novembro de 2009], que agora é da Prefeitura.
Mas, no fim das contas, eu acabo fazendo uma espécie de militância, porque sou contra milhões de coisas – embora não saia na rua ostentando nenhuma bandeira. Vou à Parada Gay – mas a verdade é que ali existe muita coisa errada. Quer saber? Acabou virando uma grande festa rave. Claro que todo mundo adora participar: o prefeito, o governador... Eles sabem que os homossexuais são uma fatia enorme de votos, por isso há tantos políticos presentes, querendo tirar proveito.

A Secretaria da Diversidade Sexual, através da Coordenadoria do Carlos Tuvfesson , está começando a lutar pela questão da união homossexual. Como você vê tudo isso?

Na verdade, a maioria dos homossexuais não quer casar, no sentido tradicional e religioso do termo – quer apenas legalizar a situação entre
eles. Não precisa casar naquele estilo, com um de fraque e o outro de noiva. Claro que não é isto! A questão é garantir os direitos do parceiro, em caso da morte de um deles. Lembram do caso do [artista plástico Jorge] Guinle e do Marco [Rodrigues, fotógrafo] *? Aquilo foi uma coisa horrorosa! A iniciativa do Carlos Tuvfesson na Prefeitura é bárbara! Passou a  dar uma segurança para muita gente. Ele é muito inteligente – não é à toa que é um grande estilista, e já se revelou um excelente secretário. Trouxe à tona questões como a homofobia, o negócio da papelada... Muito legal!

E como anda sua vida amorosa, atualmente?

Estou à procura de um grande amor, até hoje. Na verdade, tive poucos grandes amores – porque amor, mesmo, é difícil de acontecer. Existem as paixões, mas é uma coisa diferente. Hoje em dia, por exemplo, estou livre, mas ando muito travado. Na verdade, estou mais focado na minha carreira e na minha vida – raramente vou a boates. E o fato é que eu não quero sustentar ninguém. Eu não vou trabalhar para bancar um bofe, como se fala hoje em dia. Levar para jantar e só eu pago, só eu dou presente, só eu compro tênis? Nada disso! Prefiro me sustentar. Aliás, nunca sustentei ninguém. Presentear, tudo bem. Eu mesmo já recebi flores, orquídeas e até braçadas de flores: não 12, e sim 42 rosas vermelhas. Não é chique? Foi de uma paixão, que mora em Rotterdam, na Holanda.
Eu o conheci numa boate, aqui no Rio. Ele estava com problema de pagar a conta, porque só tinha dinheiro estrangeiro, e não queriam trocar. Foi uma confusão, os seguranças já estavam em cima dele. Então eu entrei em cena e disse: “Ele está comigo: quanto é a conta?” Paguei e acabamos  ficando amigos. Saímos de lá conversando e ele acabou dormindo comigo, na minha casa. Depois, começou um grande love. Mas antes a conversa; sentamos e conversamos – e eu pude ver que era uma pessoa legal, que eu não iria entrar em nenhuma cilada.

Em suma, você passa a impressão de que está muito bem consigo mesmo...

Estou sim. Graças a Deus! Hoje eu me sinto melhor do que nunca. Até com a minha sexualidade, com o meu tesão. Estou na minha, como se diz. Hoje, eu quero qualidade.


*o fotógrafo Marco Rodrigues foi casado com o pintor Jorge Guinle Filho, com quem comprou um apartamento no Leblon. Com a morte de Guinle, por Aids,  o direito de Marco à herança foi questionado. Na época, ainda não havia a lei que regularizaria os direitos civis (incluindo o direito de herança) dos casais homossexuais.

Luiz de Freitas

Luiz de Freitas - estilista

Quando se preparava para voltar ao Brasil, graças à anistia de 1979, Fernando Gabeira deu um pulo a Paris para “renovar seu guarda-roupa”. Lá, ficou sabendo, através de uma amiga, de um estilista que estava revolucionando a moda masculina no Brasil. A moça assegurou: “Você vai adorar!”. Dito e feito: já no Rio de Janeiro, instalado na casa da prima, a jornalista Leda Nagle, Gabeira foi conferir e adorou – e se tornou uma espécie de “garoto-propaganda” do estilo criado pela mente irrequieta e inventiva de Luiz de Freitas. Mas o estilista é muito mais do que isso: um grande batalhador e um gênio da costura que aos nove anos já fazia vestidos para a irmã.


Você começou a mostrar interesse pela moda muito cedo. Como foi isso?

Por sinal, essa história é muito linda. Eu tinha apenas nove anos e nós morávamos com nossa avó materna, na Raiz da Serra, em Pau Grande.
Uma tarde estava chovendo e a vovó, muito matriarcal, decretou: “Hoje ninguém sai de casa, porque pode pegar gripe!”. Então, como eu não podia ir para a rua, fui jogar cartas na vizinha, que era costureira. E foi lá que eu comecei me interessar por costura: peguei um jornal, uma fita métrica e uma régua – e comecei a riscar uma roupa igual às que ela riscava, com um método chamado “retangular”. Era assim: você fazia primeiro um quadrado e depois dobrava uma, duas ou três vezes. E aí eu disse para a minha vizinha. “Olha aqui, de tanto ver você desenhar as roupas, aprendi a fazer um molde. Agora eu preciso de tecido para cortar a roupa.”  Numa cidade toda machista, como Pau Grande, no meio operário, achei que minha avó não iria jamais me dar um tecido. (risos)

Então aos nove anos você já costurava!

 Luiz de Freitas de suspensórios
(acessório que nunca abria mão)
aos 5 anos de idade
Pois é. Aos nove anos, fiz a primeira roupa para minha irmã ir ao catecismo no domingo. Era um vestido de três saias, todo enfeitado de sianinha, com mangas fofas que eu preguei e despreguei várias vezes. Sabia que uma das coisas mais difíceis na costura é fazer uma manga que fique igual a outra? Porque você não pode pregar as duas ao mesmo tempo. O tecido era um opala branco, que minha avó acabou concordando em me dar.
A partir daí, foi uma briga. Porque, naquela época, homens costurando só havia o Dener e o Clodovil – e todos gays. Como é que um garoto do interior resolve fazer roupa?! Hoje, essa irmã, que é dona de casa e nem liga para moda se dá muito bem comigo – mas não gosta de se arrumar. Ironia, não é mesmo?

Seu lado estilista de roupas foi uma coisa que se impôs cedo para você. E como sua família reagiu?

Não muito bem, é claro! Um filho e neto de operários, que decide fazer roupas em vez de querer discutir futebol, já estava marginalizado e excluído de saída, não é mesmo? Já na fase de Petrópolis, depois da morte de meu pai, minha avó foi taxativa: “Você não vai costurar coisa nenhuma! Vai estudar e se formar, vai ser doutor”. Aliás, naquela época era o maior drama, porque no primeiro ano ginasial  meus tios se cotizavam para pagar meus estudos. Filho de pobre não tinha vaga nas escolas públicas: eram tão boas que só filho de rico conseguia entrar. A gente tinha que fazer um esforço extraordinário, e era dramático, porque você não podia tirar nota baixa...

Esta manifestação precoce de moda já tinha a ver com a homossexualidade?

É mais complicado do que isso. Eu descobri bem cedo que eu era diferente: era mais atento ao mundo feminino. Mas ao mesmo tempo, na escola primária eu tinha duas amiguinhas que eram muito brigonas. Eram duas pretinhas arretadas, e resolveram me ensinar a não levar desaforo para casa. De certa forma elas, sem saber, já praticavam bullying pesado, obrigando-me a ser brigão. A verdade é que eu tinha que revidar toda vez que um colega batia em mim. Se chegasse em casa e minha avó visse que eu tinha apanhado sem reagir, apanhava mais. Então, eu preferia bater na rua do que apanhar.

Fale um pouco mais de sua família...

Minha mãe ficou viúva muito cedo. Na época, os homens mesmo depois de casados iam servir ao exército – e o meu pai foi. E quando eu nasci, nesse ínterim, ele pegou uma pneumonia, que depois se complicou com uma meningite, e veio a falecer. Eu sou primeiro filho e primeiro neto. Tenho dois irmãos: um meio irmão do segundo casamento de minha mãe e essa irmã que odeia moda – ela diz que se soubesse quem inventou a moda ela matava (risos).
Maria e Belmiro, avós de Luiz
Pois bem, com a morte de meu pai, voltamos para a casa dos meus avós maternos. Quer dizer, na verdade eu fui criado no meio dos irmãos da minha mãe, que eram três homens – minha mãe era a única mulher ali. Ou seja, fui para um reduto predominantemente masculino. Era uma família de operários da América Fabril. Mas eu só entrei na fábrica mais tarde, depois que vovó morreu. Ela não sabia ler nem escrever, mas resolveu que o primeiro neto dela – que era eu! – iria estudar. Então, depois da escola primária, aos 11 anos, fui fazer o ginásio num colégio semi-interno em Petrópolis, o Werneck.
Acho que eu era o único preto naquela cidade. Era atração absoluta da Avenida 15 de Novembro: as pessoas esbarravam em mim, meio assustadas – afinal, ali só tinha alemão, porque era uma cidade de colonização alemã. Mas, apesar de ser filho de operários, eu não era um estudante duro, porque passava o fim de semana fazendo roupa para os vizinhos e já ganhava uma grana. Então, quando a mesada de meus colegas acabava, eu emprestava. Eu tinha 13 anos, nessa época, e já havia percebido que o que fazia ia me dar dinheiro.

E como foi a convivência como seus tios?

São todos machões, é claro, jogadores de futebol. Na verdade, eles me adoravam, mas não queriam que os amigos soubessem que eu costurava. Mas não teve jeito, isso não me reprimiu. Porque, quando a arte se manifesta e se impõe, você não controla.

Mas a morte de sua avó mudou um pouco este quadro...

E como! Eu tinha 14 anos, quando ela morreu – e então “perdi o chão”. Fiquei numa amargura tremenda, porque era ela quem bancava tudo pra mim. E lá fui eu trabalhar na América Fabril – no almoxarifado, fornecendo peças. Até que em pouco tempo eu decidi enfrentar minha família: anunciei que tinha que pedir demissão. Houve uma verdadeira guerra. Imagine: todo mundo querendo emprego e eu pedindo demissão! Foi um escândalo na cidade: “O Luiz pediu demissão!”. Logo depois, vim parar no Rio de Janeiro – e todo mundo pensava que eu estava vindo para a putaria. Na época, ainda se achava que o Rio era a terra de perdição.
É carnaval: O avô Belmiro com os netos,
Luiz de Freitas, vestido de Aladim e a lâmpada mágica
e Lurdes, irmã de Luiz, vestida de odalisca.
Mas eu, logo que cheguei, comecei a correr os ateliês – mas ninguém queria me dar emprego, porque não eu tinha experiência anterior. Resultado: tive que me conformar em trabalhar numa empresa chamada Borgoff, que fazia peças de automóvel. Eu aprendi muito rápido todo o serviço, que era uma simples questão de decoreba. Até que certo dia ganhei um dinheirinho mais graúdo no bicho e até emprestei uma parte para meu chefe, que trabalhava com sapato furado. Que cenário, hein? (risos) Foi então que eu tomei coragem, fui ao Departamento Pessoal e pedi demissão. A Dona Maria, uma portuguesa do DP, ficou inconformada, não queria me demitir, dizendo que ninguém tinha aprendido tão rápido quanto eu.

Então você persistiu no seu sonho de ser estilista.

Exatamente. Eu tinha decidido que, se eu não estivesse disposto até a passar fome em nome do meu ideal, eu não poderia dizer que tinha pelo menos tentado fazer aquilo que eu sei. Então eu fui ao limite – cheguei ao extremo. Morei na rua, dormi nos bancos da Praça Serzedelo Corrêa [em Copacabana]. Achava que se eu não batalhasse pelo meu ideal, seria um covarde!
Comecei a desenhar e voltei a visitar os ateliês de alta costura em Copacabana – era o que havia, na época. Acabei sendo aceito em um que fazia roupa para Elizeth Cardoso, Nair Bello, Dercy Gonçalves, Elza Soares e o alto escalão do Banco Central. Eu desenhava as roupas e uma mulher que eu conheci, chamada Mary Galvão, fazia bordados. Ela foi meu primeiro grande amor – depois eu falo mais sobre ela... (risos) E foi assim que eu comecei a me enturmar ali. Depois fui desenhar para os costureiros mais famosos do Rio de Janeiro: Hugo Rocha e Zé Ronaldo. Mas quando estava começando a me dar bem, fazendo roupa sob medida, veio a criação de Brasília e a transferência da capital. Houve um tremendo esvaziamento do Rio de Janeiro: a grana foi embora da Cidade Maravilhosa...

E como você reagiu a este imprevisto?

Bem, nós brasileiros somos fantásticos: é na dificuldade que nos tornamos mais criativos. Foi nessa altura que eu comecei a compreender que o futuro não estava nas roupas sob medida. Descobri que as mulheres já não tinham grana suficiente de fazer três provas de um vestido, roupas com dois ou três forros. Resultado: lancei o prêt-a-porter – fui um precursor. Comecei a fazer roupas em série para vender para as butiques.
Na época, nem havia muitas:em Copacabana só tinha a Laís, na Inhangá, e a Mônaco da Delma - que me apelidou de Sammy Davis Jr. (risos). Havia também, em Ipanema, uma butique chamada Luanda, que ficava em frente ao Bob’s, cujo dono era o homem mais bonito,  mais elegante  e mais chique do Rio: o Bob Falkenbourg, que depois foi casado com a Sylvia Bandeira. Ele era belo!! Havia também a butique Mariazinha, muito chique [em Ipanema, da Mara, que agora se chama Mara Mac]. Depois surgiram a butique do Aparício Basílio, que também era dono da Rastro, e o Zé Luiz, com a Bibba, numa época em que Mary Quant já pontificava em Londres.
A essa altura, eu já estava fazendo uma roupa no gênero Kenzo, toda a partir de retalhos. Porque eu cheguei à conclusão de que as garotas não queriam mais se vestir igual às mães, e as mães em pânico porque a moda jovem era o jeans imundo, comprado no Lixão da rua Siqueira Campos. E as mães estavam apavoradas porque assim elas não iriam arranjar um bom partido, para casamento (risos).

A esta altura, você começou a fazer sucesso?

Quem dera! O problema é que, quando comecei a fazer roupa em série para as butiques, logo descobri que elas estavam me copiando. A “Lá Na Modinha”, por exemplo, foi uma delas: compravam um modelo e copiavam 20. Um dia cheguei lá e flagrei os funcionários copiando meus modelos em papel-manteiga.
Nessa época, eu morava com a Mary num edifício na esquina da rua Rodolfo Dantas com a avenida Copacabana. Tínhamos uma cliente ali que era dona de uma loja na rua Barata Ribeiro. Ali onde é o Oscar, roupas masculinas sob medida. Mas eu não parava. Acabei indo trabalhar na tal Luanda, que não era só butique – tinha uma parte onde vendia tecido a metro, que foi onde eu consegui emprego. E foi ali que minha sorte começou a mudar, porque conheci a Helena Arouchelas, compradora de roupas da loja, e que se tornou minha madrinha profissional, e uma grande amiga. Ela se casou com o Ernane Galvêas, que foi presidente do Banco Central. A primeira roupa que fiz, mostrei e ela adorou: encomendou 12 roupas.
O problema é que eu não tinha dinheiro para fazer nem uma roupa – imagine só uma dúzia! Mas saí da butique tão eufórico que quase fui atropelado. Então corri até a rua Camerino, no Centro na cidade, onde eu conhecia um atacadista. Contei minha história para ele, um português chamado Rodrigues. O homem ficou tão emocionado que me deu crédito e vendeu para mim. Depois acabei me tornando seu maior cliente.

E assim você começou...

Exatamente: comecei a fazer roupa em série. Então resolvi retornar a Pau Grande e pedir para uma costureira de lá trabalhar para mim. Mas, para minha decepção, ela respondeu que só costurava para o marido e as filhas. Foi uma dureza convencê-la, mas ela acabou se tornando minha sócia: dona Eurelina! Em três anos em que trabalhou comigo, dei um carro zero para ela, de tanto que ela produziu. E assim eu comecei a fazer prêt-a-pôrter, na casa de dona Eurelina. As filhas nem conseguiam dormir, coitadas, porque as costureiras ficavam trabalhando até tarde na cama delas. Eu morava no Rio, mas ia todo o dia para Pau Grande.
Começamos assim e, em um ano, já fazíamos roupa para butique. O  desenvolvimento foi tamanho que nos mudamos três vezes, sempre aumentando o espaço físico. Tanto que cheguei a ter 100 costureiras. Era o auge do Caetano  Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos... O [bar] Zepelin, o boom de Ipanema, Hugo Bidet, Ziraldo, Danuza Leão e Duda Cavalcanti - as musas - Tom Jobim, Vinicius de Moraes... Uma loucura! Houve uma verdadeira virada dessa geração e ela se refletiu na moda. E eu peguei o bonde.

Quando você abriu sua primeira loja?

Eu comecei com roupa fina e chique, com uma marca chamada Belui. As pessoas perguntavam e eu explicava que era uma junção de Belmiro e Luiz, porque eu gostava de combinar nomes. Mas uma venenosa – sempre tem venenosas na moda! – veio perguntar se eu estava me chamando de “Belo Luiz”. (risos)
Mas a fama ainda não tinha chegado: eu precisava de mais projeção. A coisa começou com a primeira entrevista, que foi para a [jornalista de moda] Gilda Chataignier, do Jornal do Brasil—que eu considero minha papisa. Não esperei ela me descobrir: criei coragem e fui até lá, bater na porta! (risos). Na redação, fiquei andando de um lado para o outro até me deparar com ela – muito estilosa, por sinal. Eu queria desenhar para o jornal, mas já havia uma certa Diana, que fazia umas bonecas com uns olhos grandes.
Quando eu mostrei meus desenhos a Gilda respondeu: “Infelizmente, não tenho espaço para você nesse momento, mas bolei uma matéria sobre pessoas que estão despontando nos mais diferentes segmentos de arte, e na moda  e vou entrevistar você”. E foi assim que eu vi meus desenhos publicados pela primeira vez no Caderno B – na época, o JB era o máximo. Tanto que, depois dessa primeira entrevista, uma perua da moda disse: “Como é que esse garoto que veio do interior sabe abrir a boca?”. (risos)

Qual era o nome da sua loja?

Luiz de Freitas de saia, em São Paulo, onde realizou,
nos anos 80, época do Grupo Moda Rio,
um desfile com o estilista francês Jean Paul Gaultier,
com patrocínio da Trevira.
Mr. Wonderful, Number One. Eu vestia a intelectualidade contemporânea do Rio de Janeiro, como escritores, cineastas e artistas. Vesti Caetano Veloso, Fernando Gabeira, Ziraldo e até o Roberto Carlos – a Maria Rita, mulher dele, comprava lá. Por sinal, eu já conhecia Roberto, porque o tinha convidado para ir a Pau Grande na época da [música] Splish Splash. A loja durou uns 10 anos- e foi um sucesso. Tinha filiais na Alemanha, em Amsterdã, um show room em Nova York, loja em Belo Horizonte, Salvador, duas lojas em São Paulo e três em Portugal – uma no Porto e duas em Lisboa. Todas as filiais fora do Rio eram em sociedade com pessoas daqui e de lá. Todos morreram de AIDS.
Os preços eram altos – e chamavam a atenção. Lembro que uma vez o Moraes Moreira foi ao programa do Jô Soares e ele [o apresentador] comentou: “Que linda camisa! Você comprou em Nova York?”. E o Moraes: “Não, comprei numa loja aqui em SP, a Mr. Wonderful!”. E então o Jô: “Então, você está com grana....” Tive de mandar uma correspondência para ele, explicando que não era bem assim. Eram, acima de tudo, roupas diferenciadas, usadas por artistas.

Você também teve uma “clínica de moda”. Como foi isso?

A ideia nasceu numa época em que eu fiz uma viagem a Nova York. Eu viajei muito, desde cedo: interrompi minha vida de estudante para me dedicar a moda e tinha como meta sair do Brasil, conhecer a Europa e muitos países bem exóticos, para me inspirar... Pois foi em Nova York que eu conheci a casa de um rapaz moderno – gay de alma – onde todos os armários eram de portas abertas, uma coisa muito linda. Então eu pensei: os homens no Brasil querem isso... Mas eu também achava que eles não estavam prontos para aceitar tanta mudança, porque eram muito machistas.
Socialmente, os homens se vestiam muito mal. O homem brasileiro era conhecido pela cafonice. A lapela do paletó era grande demais, o colarinho brigando com o paletó, a calça caindo em cima do sapato – era um desastre! Esse era  o perfil do brasileiro. Então, meu trabalho com moda masculina foi de fora para dentro. Queria provocar os homens, com minhas roupas, chamando-os de “Mr. Wonderful” – mas antes eu precisava prepará-los psicologicamente.
Foi assim que decidi abrir uma clínica de moda, que ajudasse a implantar um comportamento moderno, com estilo de roupas, num ambiente estiloso. Era toda decorada com móveis antigos de hospital. E parecia mesmo uma clínica de estética. A gente conversava, discutia – em suma, fazia a cabeça dos homens. Eles já saíam de lá com as novas roupas, levando na sacola aquelas com que tinham chegado à loja. Tomavam o famoso “banho de loja”.

Nessa época, você se tornou famoso por causa do apoio da mídia, não é verdade?

Luiz de Freitas e a maravilhosa Veluma,
primeira modelo negra brasileira.
Sem dúvida! Nessa época da clinica, a TV Globo me deu uma tremenda projeção. Ela pegava meus modelos e eu escolhia os manequins – e fazíamos um desfile na hora do almoço no Edifício Avenida Central [no centro da cidade]. A repórter descia e subia a escada rolante – que, por sinal, era famosa por ter sido  a primeira escada rolante do Rio de Janeiro.
Os manequins ficavam circulando todos muito coloridos e a repórter perguntava para as mulheres que trabalhavam no local se os maridos usariam aquele roupa. Isso gerava uma discussão positiva entre elas – que confessavam que não gostavam que seus maridos fossem caretas.

Em suma: você criou um novo conceito em moda masculina...

É verdade. Aliás, tenho passagens muito engraçadas a esse respeito. Certa vez,
Luiz de Freitas  a com a modelo Lampito,
na época em que criou a etiqueta Mr. Wonderful.
uma mulher argentina entrou na loja e começou a escolher e comprar roupas... para ela. Num dado momento, ela parou para fumar um cigarro e disse que estava adorando – e então perguntou onde poderia comprar roupa para o marido. Aí eu disse, sorrindo, que ela já estava comprando numa loja de roupas masculinas (risos).

Mas como (e por que) todo esse sucesso acabou?

Porque no início da década de 1990 veio o Plano Collor, que abriu a exportação da noite para o dia – e ferrou todo mundo. Eu simplesmente fali, porque não estava estruturado para essa “abertura dos portos”. O meu público era de artistas, que queriam roupas diferenciadas e não queriam se vestir como o público deles. Além disso, meu dinheiro ficou preso, assim como o dinheiro dos artistas – a minha clientela. Muitos perderam dinheiro, eu mesmo não estava estruturado. Era eu quem bancava toda a mídia de eventos. Hoje, você não faz nada sem patrocínio, mas eu sou de uma fase anterior a esses esquemas. Ganhávamos de um lado e perdíamos do outro – porque bancávamos tudo, de cabo a rabo.

Você pagou caro pelo seu pioneirismo...

Pois é. Toda essa época foi muito adversa. Outra coisa: era eu quem vestia o pessoal do programa Globo Esporte da TV Globo. Botei os apresentadores com camisas de uma mesma cor, vesti  blazers nos apresentadores de futebol – e fiz tudo isso sem ganhar pela “consultoria”. Quando a Marluce entrou no lugar do Boni, passou a pedir três orçamentos. E eu cobrava 42 reais por uma camisa de manga curta – enquanto o pessoal de São Paulo apresentava orçamento cobrando 12 reais! Na verdade, os paulistas queriam desbancar a turma do Rio, porque quem inventou o boom da moda foram os cariocas. E os paulistas vieram atrás da gente...

Você chegou a participar daqueles esquemas de permuta de roupas com artistas?

Nunca! Aliás, até hoje eu rezo pela alma do Dr. Roberto Marinho, porque ele mudou esse conceito: ele recomendava às funcionárias que comprassem e até negociassem o preço, mas que sempre pagassem pelas roupas e nunca pedissem  emprestado. Porque as lojas já enfrentavam a produção do cinema nacional, que não tinha um tostão... E as produções de teatro eram pior ainda! Sem falar das produções de anúncios para as agências de publicidade, cujo boom aconteceu depois da moda: os diretores de arte das agências mandavam seus funcionários pedirem roupas emprestadas, mas depois nem nos davam o crédito nos anúncios...! Outro caso: certa vez, uma moça pediu uma gravata borboleta emprestada para o Roberto Carlos, o REI! Nessa, eu não aguentei: “Olha, se Roberto Carlos sonhar que você está pedindo isso emprestado, manda você para a rua imediatamente.”

Existe preconceito em relação quem faz moda no Brasil?

Claro que existe. Principalmente quando você ganha dinheiro – então, é uma ciumeira danada! Muita gente não entende que existe também o fator sorte, a competência administrativa... Eu acho que moda é arte, mas tem gente que ainda se pergunta se moda é cultura...

E como você vê esta questão da homofobia?

Isso é uma coisa antiga, não é mesmo? Aliás, sobre este ponto, eu me lembro de uma história muito engraçada do Clóvis Bornay. Certa vez, o governo de São Paulo resolveu fazer um baile carnavalesco com desfile de fantasias no Teatro Municipal, semelhante ao do Rio de Janeiro. Então, lá foram os concorrentes  de fantasias, daqui – todos gays, cada um com sua fantasia mais caprichada. Quando acabou o desfile, depois da classificação, os candidatos foram descansar no ônibus. Era bem tarde da noite. Então, aqueles velhinhos insones, que moravam na região e saíam de madrugada para a rua, disseram: “Estão vendo ali, aqueles rapazes? São todos viados!”. O Clóvis Bornay escutou e chamou o homem: “Moço, o senhor disse que nós somos todos viados. Mas viado é quem dá o cú – e nós somos artistas!”. Acho que isso resume bem o que eu penso.

Quando você assumiu sua homossexualidade?

Foi no início da década de 1980. Mas minha história sexual já vinha lá de trás, porque eu já me deparava com a homossexualidade lidando com as roupas femininas. Quando a roupa masculina entrou na minha vida, foi uma coisa mais definitiva, uma virada comportamental (antes, eu só fazia roupa feminina). Tudo está ligado à costura, é claro: aos 12 anos eu ensinei moda a um amigo e aquela foi minha primeira manifestação de que eu me identificava com pessoas do mesmo sexo. Mas achei que era quase impossível dar ênfase a isso, a não ser através da costura.

Essa sua descoberta da homossexualidade gerou alguma angústia?

Certamente, gerou angústia e sofrimento, porque é uma coisa muito difícil. Porque na primeira adolescência a pessoa já se depara com toda uma série de dificuldades “normais” – e ainda por cima essa! Graças a Deus, eu consegui superar muito bem essa situação porque eu ganhava dinheiro num ambiente em que havia muita dureza, à minha volta. De certa forma, o dinheiro se sobrepunha à questão do sexo.

No início você tinha algum parente com quem pudesse se abrir?

Não, tinha era uma dificuldade muito grande. Além do ambiente machista da minha família, eu pertenço a uma geração que não fazia perguntas – era tudo na base da “boca-de-siri”... Ninguém questionava, e se alguém desconfiasse, fingia que não sabia de nada. Nunca vieram me perguntar de quem eu gostava, ou se eu gostava de alguém... E ir a um psicanalista era uma coisa muito rara, caríssima, inacessível à classe média. Só os muito ricos é que faziam, na época, terapia no Brasil.
Minha mãe gostava muito de mim, é claro – principalmente porque eu ganhava dinheiro e podia dar conforto a ela. Mas ela também admirava  muito meu talento. Tanto que, quando fui fazer o Globo Repórter com ela,  fiz questão de mostrar sua maquina de costura e dizer: “Eu comecei nessa máquina, de mamãe!”. No dia seguinte, ela ofereceu um almoço às amigas, para comemorar essa participação no programa.
Mas o fato é que, sexualmente, eu nunca me abri para minha família. Nunca houve perguntas. Até hoje. Para eles, sou um artista assexuado. Mas a verdade é que minha situação financeira se sobrepôs à minha sexualidade. E a verdade é que eu soube ser grato, e retribuir. Meus tios se cotizaram para pagar meus estudos, meu curso ginasial – o que me ajudou na profissão, porque me deu cultura. Resultado: dei uma casa para cada um do meus três tios. Pois não se pode ser estilista sem ter cultura!!

Existe algum outro gay na sua família?

Existe sim: um primo e um tio – mas são gays “de alma”, que não botaram para fora. São muito mais do que simpatizantes, pessoas altamente sensíveis à causa.  Aliás, eu tenho lido bastante sobre essas coisas: dizem que, quando a mulher está no terceiro mês de gravidez, pode haver uma perda do hormônio masculino. Acredito que seja algo assim. O fato é que eu conheço oito irmãos gays de Uberlândia. Somente a irmã, a nona, não é.

Durante algum tempo você teve uma participação bastante ativa em favor dos homossexuais.

Sim. Eu trabalhei diretamente pela causa gay: nos anos 1980, fundei um movimento chamado FALE AIDS, que tinha sede no Centro do Rio – e não existe mais. Na época, estavam discutindo a questão das células T4 [um tipo especial de glóbulos brancos que desempenham um papel importante e central no sistema imunológico do corpo humano] e o Governo só queria dar medicamentos – o chamado coquetel – para aqueles que estavam com as taxas muito baixas. Resolvi fundar o movimento justamente para poder doar os remédios. Era só isso o que nós fazíamos: distribuir o “coquetel”.
Fiz um desfile de moda no Barra Shopping  e coloquei 30 aidéticos na passarela – homens, mulheres e crianças – que entravam com uma faixa dizendo: “O coquetel é para todos!”. Para mim, a moda só tem representatividade por ser comportamental. Depois, o próprio Governo passou a distribuir os medicamentos para todos – mas antes, no início, nós pedíamos dinheiro para pessoas. Chegamos a fazer um show com a Elba Ramalho no Teatro Rival. O grande problema, nessa época, é que os aidéticos morriam porque não tinham dinheiro para comprar os medicamentos.

O que você acha das agressões aos homossexuais, que são praticamente diárias no Brasil?

Sem dúvida isso é um absurdo, porque é a mesma situação da mulher. No fundo, o grande problema é a hipocrisia. A igreja católica não aceita o homossexual. A Lei Maria da Penha já é uma realidade, uma grande conquista – mas não se criou o equivalente para os gays. Acho que é uma coisa cultural. As próprias mulheres não interpretam a Lei Maria da Penha corretamente, porque são preconceituosas. Há o maior descaso quando um gay denuncia algo no Brasil. Resultado: um gay é morto quase todos os dias.

Qual a maior ameaça para os homossexuais: os skinheads, os políticos, os garotos de programa ou a sociedade como um todo?

Acho que é tudo isso junto! Todo mundo é um pouco culpado, principalmente os partidos, que deveriam ter uma voz, fazer mais pressão. Mas acontece uma triste realidade: gay não vota em gay, mulher não vota em mulher – aliás, elas não vão nem a médicas mulheres, sabia? É claro que isso não começou agora... Hitler colocou os gays nos campos de concentração. Cuba e a Rússia botavam os gays em prisões. E, mais lá atrás, havia a Santa Inquisição... Quer dizer, é uma situação mais geral, e muito grave. Eu procuro me manter sempre informado, querendo ser quase um especialista no assunto.

Por que você acha que as pessoas, em geral, não assumem sua homossexualidade?

Isso também é um drama muito antigo. E é um erro. Aliás, eu não tenho amigos homossexuais que vivem “dentro do armário” porque eu não confio em pessoas que não se assumem. Não servem para mim como amizade. Por isso é uma questão de caráter: é fundamental que o ser humano seja autentico. Também não me relaciono com gay casado com mulher. Enfim, meus amigos são todos muito bem resolvidos com sua sexualidade. São felizes, maravilhosos, e eu os respeito muito.

O governo do PT tem ressarcido os presos políticos. Por que você acha que nunca se ressarciu a família de um homossexual assassinado?

Mais uma vez: é uma questão cultural, de preconceito. Isso é uma verdadeira doença, que não acaba da noite para o dia . Está entranhado na sociedade brasileira. No fundo, o brasileiro não tem preconceito contra dinheiro. Uma amiga minha, escocesa, dizia uma grande verdade: “Dinheiro não tem preconceito”. É isso mesmo: dinheiro não quer saber na mão de quem está. Eu mesmo já senti isso na pele. Nunca sofri preconceito porque tive dinheiro, e recebia em sociedade com champanhe francesa, naturellement ...!!

Você não acha que também é preciso investir numa educação mais comprometida com estes temas?

Sem dúvida! Ainda bem que estas coisas estão mudando. Tempos atrás, o filho de uma conhecida jornalista de moda deu uma porrada num menino que quis segurar o pinto dele no banheiro da escola. A jornalista deu uma bronca e corrigiu: “Isto não se faz, não admito. Você tinha que dizer para o outro menino que essa não era a sua, e não bater”. Mas nem todos têm esta mentalidade mais aberta. Por exemplo, tenho um amigo que estudou  num colégio de padres: uma vez, ele segurou o pinto de outro garoto. Aí chamaram psicólogos e os pais deste meu amigo – numa tentativa de curar a gayzisse dele. Não adiantou nada: hoje ele continua gayzíssimo, feliz e muito realizado profissionalmente: fala seis idiomas, fluentemente!
 Luiz de Freitas e o jornalista Antonio Jorge,
nos anos 80, mais precisamente  no dia da
inauguração da loja Mr.Wonderful
em Amsterdam, Holanda.

Você fala pouco de seus amores...

Sou o último romântico. Tudo na minha vida vem através de uma paixão. A dona do ateliê de que lhe falei, a Mary Galvão, se apaixonou por mim, e foi o primeiro romance assumido que tive. Porque até então eu achava que só gostava de homem, e até já havia tido um caso no ginásio – aquele rapaz a quem ensinei tudo, que alfabetizei na moda. Foi uma paixão que virou parceria profissional. Ele tornou-se sócio quando abri uma indústria. A outra paixão impressionante foi a Mary, que foi minha amante. Ela era casada com um delegado de polícia, que gostava mais de cachorro do que das pessoas. Tinha quatro filhos adotivos. 

Como você “sobreviveu” à Aids?

Na época do boom da doença, eu morava em Nova York e corria riscos, porque não usava preservativo. (Pois é, parece que existem organismos que não pegam a doença...) Eu tinha o comportamento como o de todo mundo, talvez um pouco menos promiscuo, mais romântico. No fundo, eu sou um milagre ambulante. E, já que estou falando das minhas paixões na época (entre os anos 70 e 80) eu tinha um companheiro, um namorado holandês lindo de morrer. Ele foi uma grande paixão, uma coisa extraordinária. Um romance que durou 18 anos, e só acabou porque eu o mandei embora. Hoje ele é casado e tem filhos, mora na Holanda. Tornou-se um dos maiores importadores de suco de laranja do Brasil.

E atualmente? Você ainda luta de alguma forma em favor da cidadania dos gays?

Eu procuro estar sempre atualizado: acompanho mundialmente os acontecimentos, aqui e nos países mais adiantados. Interesso-me muito por isso porque tudo se aplica. É lamentável: hoje, com a globalização, deveria haver um contexto geral, mais igualitário, mas infelizmente não é assim.

Mas você não se aposentou: ainda trabalha, por exemplo, para o carnaval...

Há 10 anos trabalho com o Carlinhos de Jesus, fazendo figurinos para escolas de samba. A parceria começou quando a Mangueira ia desfilar com o enredo de Chico Buarque e o Carlinhos, que foi meu cliente na loja, perguntou se eu não queria fazer o figurino. Eu disse: “Essa não é a minha praia, mas enfrentar desafios é comigo mesmo!” Eu adoro o novo, como não iria aceitar? Então fizemos os Malandros da Lapa, que foi um sucesso extraordinário, e ganhamos o primeiro Estandarte de Ouro [prêmio do jornal O Globo]. E assim começou a parceria, que dura até hoje. Acho que dou sorte. (risos)

Em suma: você não ficou rico.

Não de jeito nenhum. Até hoje eu trabalho para me sustentar.

Você acha difícil ser empreendedor no Brasil?


Principalmente na moda: fazendo arte, acho muito difícil. Ainda não vi – e me pergunto se algum dia vou ver...Será? Vou me deitar ...!